terça-feira, 11 de janeiro de 2011

A CIGANA


       Em cidades pequenas como a nossa, do interior do Estado do Rio Grande do Sul, com poucos edifícios, nenhum elevador, sem estacionamentos pagos, sem shopping, com ainda poucas opções de lazer e cultura, a não ser aquelas ligadas à natureza, pois grande parte da sua extensão é de zona rural...
Em cidades pequenas como a nossa, calma, sem trânsito, congestionado, onde podemos ir a pé a vários lugares. Onde a violência é menos intensa e o medo ao sair na rua também. Cidade com seus problemas, é claro. Mas, boa para se viver.
        Em cidades pequenas como a nossa, onde muitos se conhecem e comentam sobre a vida dos demais, muitas coisas são ditas... Verdade ou mentira, ninguém, fora os envolvidos, sabem ao certo. Afinal, hoje as coisas podem ser de um jeito e amanhã de outro e depois de outro e de outro...
        Em cidades pequenas como a nossa, de tempos em tempos, surgem grupos de ciganos com seus lonões, camionetes, objetos para venda, mulheres com saias compridas e coloridas que ficam pelas calçadas tentando ganhar uns trocados lendo a mão dos transeuntes.
        Num certo dia, uma cigana que já demonstrava bastante idade, cabelos longos e brancos, pele escura, fixou o seu olhar cansado sobre uma mulher que passava na rua e disse-lhe:
- Quer ler a sorte, minha filha? A mulher que parecia meio triste e apática deu-lhe a mão, parecendo nem mesmo saber bem aquilo que estava fazendo.
        A cigana lendo a sua mão falou:
- Quando você era bem jovem, apareceu em sua vida uma pessoa muito especial que lhe fez muito feliz e ainda continua com você. Tome cuidado com ela. Há! Outra coisa. A sorte pode estar onde você menos espera.
Após essas palavras a cigana se calou.
A mulher então, meio sem jeito, tentando absorver o que tinha ouvido, deu-lhe uns trocados e disse:
- Obrigado. Fique com Deus.
A mulher seguiu andando e um emaranhado de lembranças começou a povoar sua mente. Embora não fosse supersticiosa e como diz o ditado “no creo en brujas, pero que las hay, las hay”, foi recordando de sua juventude lá pelas bandas de São Rafael, localidade em que vivia.
Num certo domingo de festa na igreja, daquelas tradicionais com missa pela manhã, almoço, copa e festejos à tarde, com direito à dança e tudo, estava ela sentada olhando as pessoas ali conversando, dançando e se divertindo, quando de repente... Recebeu um bilhete. Na festa também tinha o tal do correio, onde algumas pessoas por um valor mínimo mandavam bilhetes para quem lhe interessasse.
No bilhete dizia assim: “Para a mais linda flor do campo desse rincão.” Bastante poético não?
Logo após se aproximou um rapaz franzino, meio acanhado que lhe perguntou se ela queria dançar. Ela com vergonha de dar carão, aceitou. Os dois permaneceram mudos por algum tempo. Depois um perguntou o nome do outro. Tudo com muito respeito. Hoje em dia, as coisas são bem diferentes, claro. Tudo mais rápido, tudo mais momentâneo. Mas, em cidades pequenas como a nossa, principalmente, há tempos atrás, as coisas eram bem mais lentas.
Depois da dança, cada um foi para seu lado. Mas, na próxima festa de outra igreja, de outra comunidade próxima, deu-se início ao namoro. Do namoro ao casamento foi tudo muito rápido. Algo de alguma forma os uniu.
No curso normal de muitas histórias de amor – namoro, casamento, filhos... Os anos vão e vem. Os anos vão e vem. Os anos vão e vem. A rotina massifica. Os véus caem e nem sempre o que aparece do outro lado causa-nos admiração. Novos problemas e desafios surgem, os focos na vida mudam. Às vezes, vão para direções opostas. E certa distância se instala, dando lugar para novas experiências...
E assim aconteceu com os dois. Tanto ele quanto ela foram atrás de novas experiências.
Só que dias antes do encontro com a cigana, ela com sua intuição feminina, leu no celular dele uma mensagem marcando um encontro com outra mulher. Muito discretamente esperou o dia e a hora e seguiu-os. Embora já soubesse que o relacionamento não ia bem, queria ver aquilo com os próprios olhos. Observou tudo atentamente e depois de um grande esforço, foi embora.
Quando ele retornou tiveram uma longa conversa e optaram por acabar com o relacionamento, o casamento. Sem ciúme obsessivo, sem sentimento de posse, sem querer o domínio do outro, sem morte. Morte física, é claro. Porque a cada perda sempre vivemos um período de morte e de luto de alguma forma.
A partir desse momento, cada um seguiu seu próprio caminho. Com novas perdas e também novas surpresas e alegrias, que são inerentes à vida de qualquer ser humano.
A sorte pode estar onde menos se espera, já dizia a cigana. Mesmo parecendo muito contraditório, ao fecharmos uma porta pode surgir a oportunidade para muitas outras janelas se abrirem e junto com elas a sorte nos sorrir.

           Texto reescrito pelo grupo a partir do conto "A Cartomante", de Machado de Assis.

2 comentários:

  1. Muito interessante o desfecho que o grupo deu ao conto: afinal, sem a "morte física", mas com a tristeza e o luto da dissolução da união do casal. O que mostra que, mesmo "em cidades pequenas", como as que foram cenário deste conto, há pessoas sensíveis, que sabem reescrever, com pertinência e emoção, um clássico como este conto de Machado...
    A produção do grupo está muito original e atualizada, com ótima movimentação espacial e temporal.
    Parabéns a todas!
    Abraços
    Kátia

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  2. Querido grupo!

    Cumprimentos pela produção da reescrita de A Cartomante e pela tranquilidade e abertura para o diálogo entre os protagonistas do texto. É interessante um desfecho aceitando a vida como ela é, ou seja, nenhum conto de fadas, onde devemos encarar a realidade, discutí-la e tentar vivê-la da melhor forma possível, em busca da felicidade.

    Gostei muito das ideias apresentadas e o desenrolar envolvente do texto, favorecendo as coisas simples e alegres de viver no interior.
    Parece que o tempo demora mais a passar...

    Abraço carinhoso
    Profa Marilene

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